Aquele dia estava sendo realmente ruim. Um dia realmente ruim entre uma seqüência de dias realmente ruins. Na verdade, ele não lembrava a última vez que seu dia fora somente ruim.
Chovia um pouco. O trânsito estava parado na avenida, mas ele não se preocupava com isso, pois seu carro fora tomado na semana anterior para quitar algumas dívidas. Sua casa também fora hipotecada e estava por um fio. Ele tinha sido recusado em mais uma entrevista de emprego, enquanto seus antigos amigos estavam casados e bem sucedidos. Seu pai não telefonava há meses, parecia estar decepcionado demais com a ruína do único filho. Sua única namorada fugira com seu primo de segundo grau e o deixara só, mas – de certa forma – ele estava contente por não ter filhos - não queria mesmo propagar sua espécie fracassada.
Sufocado pelas paredes, ele decidiu que precisava de ar fresco. Saiu de casa, ignorando o rapaz de macacão azul que viera cortar a luz, e saiu pela calçada. Há muito tempo já perdera sua verdadeira luz. E há muito tempo perdera também qualquer estímulo para continuar vivendo.
Ele olhou em volta.
E seguiu em frente.
Olhou para os carros, as vitrines, os semáforos.
E seguiu em frente.
Olhou para as pessoas na rua, caminhando alegremente.
E seguiu em frente.
Olhou para casais, amigos, famílias.
E viu como estava tão só.
Foi aí que tudo veio à tona – toda sua dor. Lembrou-se do pai gritando, chamando-o de moleque inútil. Lembrou do seu primeiro F. Da primeira vez que se declarou a uma garota e levou um fora. Lembrou da primeira vez que seu currículo foi devolvido. E perdeu a conta, ao tentar lembrar-se de quantas vezes esse ciclo se repetiu. Ele percebeu que estava cansado de perder. Estava cansado de todo aquele sofrimento. Estava cansado do peso que era carregar a própria existência nas costas, sem nunca receber nada – de bom – em troca. Ele percebeu que estava cansado demais para continuar seguindo em frente.
Inconscientemente, chegou ao prédio da Faculdade (onde havia se formado). A cada andar que subia, tinha mais certeza de que queria acabar de uma vez com tudo.
Ele chegou na cobertura, caminhou até a borda.
E depois caiu...
- Não é bonito?
Ele se virou.
- Como?
- O arco-íris. Não é bonito?
E olhou pra menina que apontava para frente.
- E as árvores? Nem parece que são tantas, lá de baixo. Você não acha esse lugar agradável? Gosto de sentir o vento... E de ver as árvores, é claro. Parece um mar verde, não parece? Verde é uma linda cor. A minha preferida.
- Verde?
- Ah, e veja só o céu... Não parece um mar de cabeça pra baixo? Tudo pode parecer mar. E o azul é tão tranqüilo... Azul é definitivamente a minha cor favorita.
- Azul? Mas...
- É verdade, eu disse que era verde. Mas quer saber? Gosto das duas.
Ela sorriu, e só então ele percebeu que não tinha caído. Tinha apenas olhado pra baixo e imaginado a queda. Esquecera, entretanto, de olhar também o arco-íris, e as árvores, e o céu. Esquecera de sentir o vento. E esquecera até mesmo de olhar em volta para se certificar que não tinha mais ninguém.
De repente ele resolveu olhar pro passado também. O que mais havia deixado de olhar?
E ele viu seu pai ensinando a jogar futebol. Viu a satisfação no rosto da sua mãe quando ele tirou aquele B sofrido no colegial. Viu seu professor aplaudi-lo pelas costas em sua formatura. Viu sua primeira paixão lhe sorrindo. Viu-se entre amigos, jogando conversa fora...
- Porque você não sai daí? Eu sei que a vista é melhor, mas é bem perigoso.
Ele segurou forte a mão que ela estendeu.
E depois seguiram em frente - juntos.