7 de fevereiro de 2010

Simbiose


O ar sem teu cheiro me é rarefeito
Beijar sem teu gosto
Tem gosto do medo de ser deposto
Do posto de teu

Mas quando tu respiras meu ar
E se deleita com meu beijo
Quando tu correspondes ao meu arfar
E quando tu deitas tua cabeça em meu peito
Em teu peito eu sinto

Que teu corpo
Responde aos meus estímulos
E meu corpo
Sustenta tua carne, teus ossos
E teus músculos
Que se contraem ao menor relance
Do meu olhar.

1 de fevereiro de 2010

Coração sem espinhos

Foi emocionante quando o carteiro me entregou o pacote. Era uma caixa simples, coberta por papel madeira, carimbada com um aviso de “frágil”. Abri-a com as mãos tremendo, como se soubesse (ou sentisse) do que se tratava, e encontrei uma segunda caixa. Essa já não era tão simples: vermelha, envolvida com cetim e fitas douradas, parecia um presente de natal. Desatei os laços bem devagar - talvez pra prolongar o momento -, retirei a tampa e, dessa vez, encontrei um relicário antigo, já meio oxidado, mas muito bonito mesmo assim. Ele estava trancado com um cadeado de diário, daqueles que qualquer chave abre, e eu entendi o recado imediatamente: tu sempre me disseste que é muito fácil amar alguém de vez em quando, mas que amar alguém o tempo todo, com mau humor matinal, remela nos olhos, mau hálito, TPM, ronco, estresse e rotina repetitiva, é muito complicado. E eu, aparentemente, havia passado no teste, pois nosso amor estava resistindo aos desafios diários da convivência sem grandes dificuldades.
Logo que abri o relicário com a chave do meu diário, uma lágrima desapontou em meus olhos. Lá estava o teu coração, embrulhado em um plástico-bolha, pulsando, pulsando, pulsando. Tomei-o nas mãos – era macio e escorregadio - e aproximei-o do meu próprio coração para que eles pulsassem juntos. Uma felicidade sem tamanho me invadiu – e como poderia ser diferente? Aquela era a maior prova, não só de amor, que alguém já tinha me feito. Era uma prova de confiança e entrega absoluta. Naquele momento, certo do teu amor, eu tive certeza de que tu me farias feliz. Por isso, na mesma noite, pedi tua mão em casamento. Tu aceitaste sem sequer pestanejar, abraçou-me forte e disse baixinho em meu ouvido “cuida bem do meu coração”. Eu, quase ofendido com aquela recomendação, respondi que “quando a gente gosta, é claro que a gente cuida”.
E por muito tempo nós vivemos juntos e bem. No início, eu protegia teu coração como se ele fosse de vidro; andava com ele sempre pertinho do meu, pra garantir que continuasse a bater por mim. Quando, um dia, eu esqueci de levá-lo ao trabalho comigo, fiquei nervoso a tarde inteira, suando frio, com medo que ele parasse por causa da solidão; mas descobri, ao chegar em casa, que mesmo distante ele continuava a bater – e que o compasso das batidas chamavam meu nome. Passei então a deixá-lo em casa, por ser mais seguro e mais cômodo (pra mim e pra ele); mas sempre antes de dormir ao teu lado, eu checava se teu coração estava bem. Entretanto, como ele só batesse mais forte a cada dia, passei a checá-lo de dois em dois dias, depois de semana em semana, de quinze em quinze dias...
Nós já estávamos casados há alguns anos, quando eu te notei triste, desanimada, quieta demais. Perguntei se tinha acontecido alguma coisa, e foi quando tu me disseste que teu coração estava sofrendo. Na hora eu fiquei em choque: “como assim sofrendo?”. Tentei lembrar da ultima vez que eu o tinha checado, e quando não consegui, a culpa me tomou. “Estou me sentindo muito sozinho” diria teu coração, se pudesse. Corri até o quarto, abri o relicário - agora verde de tão oxidado - e peguei-o delicadamente. Continuava corado, saudável e batendo forte como se nada tivesse acontecido - como poderia estar sofrendo? Fiquei irritado. Achei que tu estavas cobrando muito de mim, enquanto eu passava os dias trabalhando arduamente para sustentar nossa família.
Ainda com teu coração em mãos, levei-o até você. “Olha aqui, ele está perfeito!” Eu disse em tom de revolta. Estava tão cego de raiva, que só percebi que havia apertado ele com força demais, quando tu colocaste a mão no peito e teus olhos se encheram de dor. Olhei pra minha mão, e vi que o teu amor escorria entre meus dedos. Escorria com o sangue que espirrava em minha blusa, e escorria vermelho, como o cetim da caixa.
Teu coração ficou bem, depois de costurado, mas teu amor escorreu tanto que acabou. Dias depois tu foste embora, levando consigo nossos filhos e até o plástico-bolha que eu gostava de usar como terapia. E fui eu quem ficou sozinho, lembrando de como eu tive certeza de que tu me farias feliz – e, Deus, como tu me fizeste feliz! -, sem jamais me preocupar retribuir a dedicação. Descobri que ser amado é, quem sabe, mais difícil que amar. Pois quando o amor oferecido é demais, a gente se acomoda, a gente se descuida, e a gente se esquece que coração sem espinhos, como me era o teu, é mais fácil de esmagar.

Quem me segue (se perde comigo)